Conto: Através do Véu

 

Diego Machado largou o celular na mesa da sala de jantar ao ouvir batidas na porta. Ele vinha tentando se comunicar com Cristiane há uns quinze minutos, mas ela não atendia às ligações. Sua esposa saíra com a filha pequena do casal, Mariana, há algumas horas.

O rapaz atendeu à porta e olhou para baixo para fitar o garoto. Ele era familiar, Diego notou. Mas o que chamou sua atenção foi o corte que fazia escorrer sangue de sua têmpora até o queixo. Seus cabelos em estilo “tigelinha” iam para todos os lados, e suas roupas estavam amassadas e sujas.

- O que aconteceu, menino?! Você está bem?

- Senhor, preciso de ajuda – o menino se expressava claramente, apesar do medo. Deveria ter já seus oito anos. – A gente se acidentou. Pode ligar pra emergência?

Ao erguer a cabeça, Diego então os viu, como se tivessem se materializado naquele instante, os dois carros danificados por uma colisão frontal. Os sentidos da rua em que Diego morava eram separados por uma pequena praça; esses carros estavam do lado oposto ao que ficava a casa de Diego. Como eu não ouvi essa batida?

Ele avistou o motorista do carro branco saindo do veículo. Aquele estivera claramente andando na contramão, colidindo então com a família do garoto. Diego sentiu o sangue ferver. Ele mesmo sofrera um acidente de trânsito com seus pais quando era criança, e, apesar de não ter sido grave, e de ter sido há bastante tempo, aquela lembrança ainda o atormentava. Diego tinha carteira de motorista, que tirara a muito custo, mas ele geralmente preferia que Cris dirigisse o carro do casal quando eles saíam juntos.

- Espere aí, garoto, vou pegar meu celular e já resolvemos isso.

O rapaz lhe deu as costas e foi até a mesa da sala de jantar, pegando seu smartphone de um modelo mais que ultrapassado. Ele teclou o número de emergência e se virou para a criança novamente, prestes a perguntar seu nome e os de seus pais...

- Puta merda, eu mandei você esperar aqui!

Diego saiu de casa, olhou para os dois lados da rua, forçou a visão para focar nos carros depois da praça – mas o moleque sequer teria tido tempo de ir tão longe – e o menino não estava em lugar algum. Mas isso era impossível.

Não havia sido uma brincadeira sem graça de uma criança sem muita imaginação. O menino estava realmente ferido. Diego estava vendo um acidente do outro lado da praça. Não havia trânsito naquela rua, no entanto, e ninguém aparecia para prestar qualquer ajuda ou atendimento. Que estranho.

Diego fechou a porta de casa e cruzou a primeira pista. Atravessou a praça a passos largos e logo estava diante da janela do Civic vermelho. A passageira estava com a cabeça virada para o outro lado, parecia desacordada. Seus longos cabelos castanhos cobriam seu rosto. Diego ouviu o grito de um homem, algo que não entendeu, seguido de “Filho, você está bem?”. O motorista procurava pelo menino. Antes que o jovem do lado de fora desse uma boa olhada nos ocupantes do veículo, ele ouviu o outro que se envolvera no acidente se aproximando.

- Ah, cara, que sorte você ter aparecido – o sujeito era baixo, com físico e roupas de profissional de educação física, e parecia ter uma idade próxima a de Diego – Meu celular morreu. Pode me emprestar o seu, fazendo o favor? Eu realmente gostaria de ligar para a minha namorada agora e avisar o que aconteceu.

- Claro, só espere eu chamar uma ambulância primeiro e...

Os olhos de Diego foram atraídos para frente, e ele piscou para ter certeza de que não estava com a visão embaçada ou algo do tipo. Olhou para o carro outra vez; tudo nítido, normal. Quando encarou as construções do outro lado da rua – sua casa, a farmácia, o pet shop – parecia que tudo para lá da praça estava envolto em uma espécie de névoa ou neblina, ou...

Diego teve uma vaga lembrança de um dos filmes de Harry Potter, e daquele véu sinistro no arco de pedra dentro do Ministério da Magia que levou Sirius Black embora quando o bruxo foi morto. Era como se ele enxergasse o outro lado da rua através de um véu como aquele. Foi uma comparação muito específica, absurda e, ao mesmo tempo, era o que estava parecendo.

O rapaz se esqueceu subitamente do acidente, da criança desaparecida, e voltou correndo até sua casa. Ele não chegou a pensar no que aconteceria ao passar pelo véu/névoa/neblina, mas não sentiu nada a não ser do retorno de sua visão perfeita das construções, do asfalto, da calçada e do pequeno gramado em frente à sua casa.

Diego girou a maçaneta da porta, uma vez que não a havia trancado ao sair, e sem diminuir o ritmo das passadas acabou colidindo com a madeira. Ele espalmou as mãos na porta, atordoado, e testou a maçaneta outra vez. Como a porta tinha se trancado? Diego sequer estava com a chave.

Antes que começasse a pensar em uma maneira de entrar na própria casa, a porta foi aberta por dentro e uma moça o fitou com o cenho franzido. Ela devia estar no final da adolescência, era uns dez centímetros mais baixa que ele e tinha cabelos dourados. Diego teve uma sensação de que a tinha visto em algum lugar.

- Pois não? – a moça bonita indagou, uma mão na cintura. – Por que está forçando a porta? O que você quer?

- O que eu quero? Eu moro aqui.

Diego tinha total consciência de que alguma coisa estava fora dos eixos. Aquela moça estava na casa dele, de porta trancada, e o olhava como se ele fosse louco. Aquele véu continuava atrás dele, separando o seu lado da rua da praça e do local do acidente. E a sua sala de estar parecia significativamente diferente da que ele havia deixado cinco minutos atrás.

- Moço, eu não sei o que você usou, mas vou fechar a porta agora, tá legal?

- Desculpe! Desculpe, ok? Por favor, será que eu posso entrar?

A loira começou a exclamar um “De jeito nenhum!”, mas Diego já a empurrava para o lado e abria caminho para sua sala de estar. Ele olhou em volta, incapaz de reconhecer um móvel sequer. Até a pintura das paredes estava diferente. A mesinha de centro era bastante parecida com a que ele e Cristiane haviam comprado juntos, mas era pelo menos uns vinte anos mais antiga.

- Cara, eu vou ligar para a polícia! – a moça continuava congelada próxima à porta aberta, tensa dos pés à cabeça.

Diego voltou para perto dela, apontando um dedo para fora.

- Se for ligar, que seja para informar sobre aquele acidente!

Os dois olharam naquela direção, e o queixo de Diego caiu.

Ele estava certo de que tinha corrido até um carro esportivo branco amassado sobre um Civic vermelho. Mas, agora, ele via dois sedans pretos, um de lado na pista e outro que se parecia muito...

- Aquele é o meu carro?!

- Moço, você estava naquele carro? – o tom dela mudou e assumiu um ar de cautelosa preocupação. – Porque, não sei se percebeu, você está sangrando.

Diego se virou para a adolescente, e ela apontou para a própria têmpora. Ele sentiu dor ao tocar sua pele, do lado esquerdo do rosto, e viu os dedos sujos de sangue. Sentiu vertigem e falta de ar, o chão parecia se mover e ele cambaleou para o lado.

O que está acontecendo?

Ele se apoiou no que quer que houvesse ao alcance das mãos. Era uma estante alta com alguns livros, retratos e enfeites. Uma moldura tombou para trás quando Diego escorou o corpo na estrutura da estante. Ele a pegou para colocar no lugar, mas o que viu na fotografia o fez aproximá-la do rosto com os olhos arregalados. A jovem veio ao seu lado naquele momento.

- Como você conhece essa mulher? – Diego mostrou a foto de Cristiane com um bebê no colo. Ele nunca tinha visto aquela foto antes, e sua mulher estava um tanto diferente. Desde que se lembrava, Cristiane sempre mantivera seus cabelos loiros, mas ali estavam castanho-claros. – Quem é esse menino que ela está segurando?

Aquela expressão de quem tentava compreender um louco retornou ao rosto dela, mas Diego tinha coisas mais importantes com que se preocupar.

- Moço, essa é a minha mãe, Mariana. Esse bebê aí é o meu irmão, Gustavo. Você conhece a minha mãe?

- Mariana?!

Que coincidência sobrenatural era aquela? Uma mulher extremamente parecida com sua mulher – sério, ele poderia comparar aquela foto com outra e tentar jogar a brincadeira dos sete erros, e provavelmente não solucionaria – e tinha o nome de sua filha?

Diego clareou a garganta, mantendo a voz calma.

- Talvez eu a conheça. Qual o nome completo da sua mãe?

- Mariana Gonçalves Machado.

Com um arrepio na espinha, as mãos de Diego começaram a tremer, e ele devolveu a moldura na estante antes que a derrubasse. Aquilo não era possível. Ele certamente não estava olhando uma foto de sua filha já adulta. Ela tem três anos! E aquela adolescente – embora familiar – não era sua neta.

Aquele moleque dos infernos. Injetou alguma droga em mim enquanto eu não estava vendo. Eu estou alucinando, é isso que está acontecendo.

Mas... tudo parecia muito claro e real para ser uma alucinação. Ele não estaria pensando direito se estivesse sob o efeito de drogas, não é?

Será que...

A jovem aparentemente não achou normal aquele estranho ficar encarando o retrato de sua mãe por tanto tempo. Ela o escrutinou de cima abaixo por um tempo, então o segurou pelos ombros e o empurrou até a porta de entrada.

- Por que você mesmo não liga para a polícia, ou para a emergência, e espera por eles lá fora? – ela disse, em um falso tom de gentileza. – Afinal, você até tem um celular, está com ele na mão. Mesmo sendo um celular da idade da pedra. Tchau.

- Moça, espere...

Diego estivera absorto demais em teorias absurdas para impedir que a adolescente o empurrasse até o gramado, então não teve o que fazer além de vê-la fechar a porta na sua cara. Ele encarou o reflexo do próprio rosto pela tela bloqueada do celular, o sangue que escorrera da sua têmpora secara e havia formado um rastro vermelho escuro na lateral do seu rosto.

O rapaz decidiu tentar ligar para a esposa outra vez, talvez ouvir sua voz e falar sobre algo que fizesse sentido pudesse devolvê-lo à sanidade. Mas não conseguiu fazer o celular funcionar; a tela permaneceu desligada. Diego bufou em exasperação e enfiou o aparelho no bolso da jeans surrada. Ele se virou para a rua e viu o casal fora do carro, conversando com o sujeito baixo. Os carros branco e vermelho estavam de volta, nas mesmas posições em que colidiram. Os veículos pretos tinham saído da sua imaginação? Não havia qualquer sinal daquele menino.

Diego resolveu verificar se os três precisavam de alguma ajuda. Deu três passos e viu algo que o fez parar no meio da rua. Aquela cortina espessa parecia definitivamente se mexer, ondular, e feixes de luz e cores compunham aquele véu que separava os lados da rua. Ele teve a impressão de estar olhando para uma projeção com interferência, e poderia jurar que havia coisas do outro lado se alterando. Em um piscar de olhos, as pessoas que havia visto não estavam mais lá.

Ouviu um som longo e estridente de buzina vindo da sua esquerda; Diego continuava no meio da rua. Apressou-se em sair do caminho da Duster que não tinha intenção de diminuir sua velocidade. Pisando na trilha de caminhada da praça, Diego atravessou o véu. E gritou.

Uma caminhonete viera em alta velocidade da rua coletora, à direita, e o condutor perdeu controle do freio no momento de fazer a curva, batendo lateralmente com o Civic vermelho. Este capotou, invadindo a praça. Diego viu o veículo vermelho de ponta cabeça, as janelas estilhaçadas, o motorista em seu banco com a coluna fraturada. Morto. Não viu seu rosto. A passageira fora projetada alguns metros, seu corpo caído em um ângulo pouco natural manchando o jardim de flores de um vermelho brilhante. Os longos cabelos castanhos espalhados na grama. O ventre arredondado carregando o bebê que não sobreviveria. Era a mãe de Diego, duas décadas e meia mais jovem, morta.

Ele não tinha dúvida. Aquela era sua mãe. Mas era mais nova do que ele naquele momento. Estava grávida. E morta. Diego era filho único.

O rapaz olhou novamente para o motorista. Soube, sem precisar ver detalhes, que o dono daqueles cabelos negros espetados e ombros largos era seu pai. Ele pensou ter escutado o outro motorista chamando, talvez estivesse machucado, mas Diego ignorou. Virou-se e correu novamente em direção à sua casa. Ele precisava falar com aquela moça novamente. Seu celular não funcionava. Precisava de respostas. Alguém que dissesse que ele não estava louco. Ou que o levasse ao hospital e verificasse se ele estava sob o efeito de algum produto alucinógeno ou a merda que fosse.

Diego esmurrou a porta da própria casa. Bateu até a mão doer. Ouviu uma voz que conhecia melhor que a dele lhe dizer que estava indo. Cristiane o recebeu.

Não era Mariana adulta, parecida com Cristiane. Era Cristiane, exatamente como o deixara pela última vez naquela manhã.

- Ah, você chegou! Graças a Deus! Amor, você não vai acreditar...

Diego se adiantava para entrar em casa, presumindo que tudo voltara ao normal, e para abraçar sua esposa como quem busca por uma garrafa d’água depois de uma corrida. Cristiane reagiu de imediato e empurrou a porta, impedindo seu avanço. Eles se entreolharam pela fresta que o pé de Diego manteve aberta, ambos genuinamente confusos.

- Cris, o que foi isso?!

- Desculpe, a gente se conhece?

Diego riu, um som desafinado e um tanto histérico.

- Amor, você tá brincando comigo, né?

Mas ela não sorriu. Colocou as mãos na cintura e o tecido da camiseta se esticou. Sua barriga estava inchada de um jeito que ele já vira antes...

Ela definitivamente não estava grávida quando saiu de casa.

- Eu que te pergunto, cara. De onde você me conhece? É algum amigo do meu marido?

À menção da palavra "marido", o coração de Diego foi parar na garganta, e ele não registrou quando Cris gritou o nome de alguém. Mas ele viu quando um homem muito alto, com pele marrom escura, carregando uma menina pequena com volumosos cachos dourados, parou atrás da sua esposa.

- O que foi, amor? – o homenzarrão perguntou naturalmente.

- Esse cara é um amigo seu?

Cristiane, sua esposa, sua linda e amada esposa, apontou para Diego como se ele fosse apenas mais um homem qualquer dentre as centenas, os milhares de homens que ela viu no decorrer da vida e cujos rostos rapidamente esqueceu. Ao contrário do rosto daquele homem alto, que pousou a mão forte em seu ombro como quem diz “Não se aproxime, colega”.

- Não. Precisa de ajuda, cara? Você não tá com uma cara boa.

Diego levou os dedos para o corte misterioso em sua têmpora, lembrando-se de que tinha sangue seco no rosto, mas não sentiu nenhuma textura além da sua pele. Puxou o celular e tornou a ver seu reflexo pela tela: não havia ferimento algum.

Bom, é isso, eu estou enlouquecendo.

O rapaz olhou para trás, para o acidente que matou seus pais. O véu dificultava sua visão, mas ele ainda conseguia vê-los. Até não conseguir mais. A névoa, antes meio translúcida, então com feixes de luzes e cores, agora se tornava negra, e deslizava em sua direção. Conforme avançava, o que ficava para trás sumia; e Diego só teve tempo de se perguntar o que aconteceria quando ela o alcançasse.

- Ei, vocês estão vendo is...

Uma lufada de ar, uma sensação esquisita na boca do estômago, e então vazio.

Cristiane abriu a porta da frente e se deparou com a calçada deserta. Franziu o cenho, saiu, olhou para esquerda e para a direita, e concluiu que havia sido uma brincadeira sem graça de alguma criança sem nada melhor para fazer.

- O que foi, amor? – Rodrigo veio da cozinha com Dani nos braços.

- Nada, achei que alguém tivesse batido.

A jovem mulher tornou a fechar a porta e retornou aos seus planos para o chá revelação do seu segundo filho, esquecendo-se rapidamente de que alguém pudesse ter aparecido em frente à sua casa. Afinal, não há como se lembrar de alguém que nunca existiu.

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