Conto: Nuvem

             Abri os olhos e meu primeiro pensamento foi de que algo estava errado. Tudo que havia em meu campo de visão era o céu cinzento encoberto por nuvens prestes a se desfazerem em chuva, e o campo gramado no qual eu estava sentada. Ou seria o topo de uma montanha? Minhas mãos se apoiavam na beira, e, olhando para baixo, vi que minhas pernas estavam pendendo para o infinito abismo.

Acho que a reação lógica seria me levantar o mais rápido que me fosse permitido, de forma a não cair naquele precipício. Ou ao menos entrar em pânico. Mas eu apenas continuei olhando para o que quer que houvesse entre meus pés e o solo, talvez apenas parcialmente ciente do perigo que corria.

Quando ergui a cabeça, porém, levei um susto. Como se tivesse sido puxada para perto de mim, uma das nuvens estava a poucos metros de distância do meu rosto. Mas ela era diferente... mais sólida, talvez. E mais cinzenta, quase negra. Eu deveria achar que estava vendo coisas. Em vez disso, abri a boca e disse:

- Eu não sei onde estou.

- Onde você sempre está.

A Nuvem não tinha um rosto. Não tinha boca, não tinha olhos. Ainda assim, de alguma forma, eu sabia que ela tinha falado comigo, assim como eu sabia que ela me olhava naquele momento.

- Não... Isso não faz sentido. Eu nunca estive aqui antes.

- Pense um pouco mais. Nada aqui te parece um pouquinho familiar?

Olhei em volta, ao mesmo tempo em que sentia um crescente aperto no peito. Aquela sensação perturbadora de que havia algo comprimindo meu coração, esmagando-o contra o peito, sufocando meus pulmões. Arfei. Talvez fosse a altitude. Eu deveria estar em um lugar muito alto, não? O ar estaria rarefeito.

Minhas mãos começaram a formigar, então as apertei uma na outra e as pressionei contra a barriga, curvando-me para frente. Diante do meu rosto, a ribanceira sem fim. Percebi que suava, e tentei parar de me mexer, parecia que qualquer coisa poderia me fazer despencar, contudo eu fisicamente não conseguia levantar dali. Seriam sintomas da adrenalina no meu corpo?

- Vamos, você não tem tempo para isso – a Nuvem tornou a falar, e o som que ela produzia parecia ecoar em minha mente barulhenta, deixando-me zonza.

- Do que está falando? Por que estou aqui?

Por mais que eu estivesse em campo aberto, sentia-me fechada em uma caixa, encolhida em posição fetal e com cada pedaço do meu corpo comprido no espaço quadrado pequeno demais para me comportar.

- Porque você pensa demais. É isso que acontece quando você fica sozinha. Então, vamos continuar de onde paramos, o que acha?

Fitei a estranha Nuvem, não entendendo aonde ela queria chegar. Onde paramos com o quê?

- Tem muita coisa pendente na sua vida e, a essa altura, se você não começar a colocar tudo nos trilhos, sua vida vai começar a desmoronar, não acha?

Aquela sensação de compressão desceu para o meu estômago, e senti um mal-estar muito familiar.

- Não é para tanto – murmurei. – Eu estou fazendo o que posso, e nem tudo está no meu controle.

- Você tem 22 anos e está prestes a se formar, como ainda não decidiu em qual área vai fazer sua especialização?

- Eu tive afinidade com várias áreas do Direito, não é tão fácil assim de decidir! Eu sequer sei se quero advogar.

- A essa altura, você já deveria saber.

A atitude petulante daquele... ser, o que quer que fosse, me irritou.

- Você não tem nada a ver com isso, essa decisão é minha.

- Mas eu tenho tudo a ver com isso. Se não sou eu aqui abrindo os seus olhos, você não estaria tratando tudo com a importância que merece. Ou você acha que seu alto desempenho no estágio e nas avaliações da faculdade foi mérito exclusivamente seu?

- Só sei que me trouxe insônia e vício em cafeína – retruquei, sentindo minhas mãos começarem a tremer.

- Ah, sim, não vamos nos esquecer de que seus pais precisam fazer horas extras para poderem bancar suas despesas mensais com plano de saúde e tratamentos. Mas você jura que está se virando bem sozinha.

- Eu não tenho culpa por ficar doente! – gritei, e senti que gritava isso com uma frequência cada vez maior, mas não era muito convincente. – Há problemas que eu preciso tratar, para que não se agravem, senão depois só vão ficar pior! E por que você está aqui apenas falando essas coisas horríveis sobre mim?

A Nuvem soltou uma risada, um som vazio e perturbador, e eu preferia nunca ter ouvido aquilo.

- É justamente para isso que estou aqui. Aliás, que nós duas estamos aqui.

Olhei ao meu redor novamente, tentando encontrar algo que conhecesse, como a Nuvem mencionara. Nada. Então olhei para baixo. O zumbido que incomodava meus ouvidos parecia se intensificar quando eu observava o abismo.

- Tentador, não? – a Nuvem perguntou, e eu sabia a que ela se referia. – Por que não vai em frente?

- Como assim?

- Por que não se joga?

- Eu não consigo me mexer.

- É o que você pensa. Eu te vi tentando levantar. Claro que você acha que não consegue, é infinitamente mais difícil do que se jogar. Mas se deixar cair é fácil.

Neguei com a cabeça, mesmo não estando tão convicta assim.

- Eu não quero.

- É claro que quer – ela instigava.

- Não, eu não quero.

- Se você diz. Mas, sabe, todos vão em algum momento. Você ainda verá muitas pessoas partindo, isso não a preocupa?

- Não gosto de pensar nisso – ralhei, tentando espantar a angústia que sempre me dominava ao pensar sobre esse assunto.

- Sei que não, mas você pensa mesmo assim. Quem não questiona a própria vida ao menos uma vez quando pensa sobre a morte? Seja a morte dos outros ou a própria. Há tanto a se fazer, tanta coisa a não fazer; tantas tragédias que podem acontecer; quantos anos será que restam, seis ou 60? E se eu morrer amanhã, o que terei deixado? Mas e se eu viver até os 95, quem ainda estará aqui para ficar ao meu lado? Será que está muito tarde para conhecer o amor da minha vida?

- Cale a boca. Cale a boca!

- E de que adianta você se preocupar tanto assim com seu futuro, seu destino, o legado que vai deixar para quem vier, se sequer sabe quando terá condições de arranjar a casa própria? Não sabe quando vai conseguir comprar um novo par de calçados. Sequer sabe o que vai fazer para a janta de hoje!

Desesperada para fazer a Nuvem se calar, sem sucesso, gritei para o nada, tentando ao menos sobrepor minha voz à dela. Às vozes na minha cabeça. Ouvi trovões e por alguns segundos apavorantes pensei que fosse morrer ali.

- Por que você está fazendo isso? – exigi saber. – Para que dizer essas coisas horríveis?

- Não estou fazendo nada! É tudo você.

- Do que está falando? Ah, meu Deus, eu vou morrer!

O aperto no meu peito era insuportável, eu não sabia como ainda estava respirando.

- Certamente vai. Pode ser hoje, pode ser semana que vem. Melhor pensar logo em objetivos relevantes para sua vida. Não há tempo a perder!

Aquela entidade dos infernos parecia se divertir. Respirei fundo, de alguma maneira, e cerrei os dentes.

- Se não é você que está fazendo isso, se sou eu, posso fazer com que pare.

- Boa sorte com isso.

Fechei os olhos. Fechei-os com força. Plantei as palmas das mãos nas minhas coxas, tentei me esquecer de que estava literalmente na beira da morte. Como é que se faz? Ah, sim. Respirei fundo uma, duas, dez vezes. Tentei focar minha mente em alguma coisa, qualquer coisa, para tentar fazer aquela cacofonia parar. Céu cinzento. Chuva. Guarda-chuva. Guarda-chuva amarelo. How I Met Your Mother. Série. Hum, preciso começar uma série nova. Depois vou procurar no aplicativo. Comédia ou romance? Uma comédia, normalmente os episódios são mais curtos, eu não tenho tanto tempo disponível. Então... Ah, olha, funcionou.

Abri os olhos. Meu coração diminuía sua frequência de batimentos aos poucos. Mas a maldita Nuvem ainda me encarava. Inclinei a cabeça e perguntei:

- Quem... O que é você?

- Achei que nunca fosse perguntar. Sou parte de você. A pior parte de você, na verdade. Sou sua ansiedade. Sou sua depressão. Às vezes sou apenas garoa, às vezes sou temporal, mas sempre estou aqui, com você. Controlando o que há de bom e o que há de ruim no seu ser. Você acha que está no comando? Há anos estou aqui te fazendo encarar o abismo, te instigando a pular, relembrando seus piores medos. Não vê que o tempo todo sou eu que te controlo?

- Isso não vai ser para sempre – ergui o queixo em desafio. – Eu estou trabalhando em melhorar.

A Nuvem murmurou algo que eu interpretaria como um dar de ombros, se ela os tivesse para fazer isso.

- Além disso, você diz que está há anos me instigando a me jogar. E eu não cedi – cruzei os braços. – Talvez você não me controle totalmente.

- Acredite no que quiser. O seu otimismo sempre volta quando suas crises passam. Mas isso não dura muito. Eu te vejo de novo daqui algumas horas.

- Não se eu puder evitar.

Um riso carregado de sarcasmo reverberou pela Nuvem, e então ela se dissipou. Em um piscar de olhos, o precipício e o céu cinzento deram lugar a um ambiente muito mais familiar. Reconheci as quatro paredes pintadas de branco gelo do meu próprio quarto. A cama na qual eu estava sentada – apalpei o colchão repetidamente, certificando-me de que este cenário era real –, o guarda-roupa, a estante de livros, meu violão em seu suporte ao lado da janela. Olhei os rostos dos artistas pop nos pôsteres das paredes, pendurados ali desde meus 11 anos, todos me encarando de volta e me garantindo que eu tinha voltado para casa. Estava segura. Cocei meu braço, minhas unhas percorrendo os relevos causados por feridas mal cicatrizadas. Com um suspiro, busquei meus fones de ouvido na mesa de cabeceira, a fim de algo que superasse o barulho dentro da minha própria mente.

Comentários

  1. Parabéns por embarcar nessa jornada maravilhosa e desafiadora da escrita! Lembre-se de que cada palavra que você escreve é um passo a mais em direção ao seu sonho. Confie na sua voz e no seu coração, pois suas histórias têm o poder de tocar e transformar vidas. Haverá dias de dúvidas, mas lembre-se sempre de que cada grande autora começou exatamente onde você está agora. Persistência, paixão e autenticidade são suas maiores aliadas. Continue escrevendo, pois o mundo precisa das suas palavras. @vital_bati94694

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    1. Muuuito obrigado pelo incentivo! Fico muito emocionada!

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